Depois de mais um gole,
Orris bate com o copo na mesa e diz, um tanto desconsolado, ora um grupo de
frases, ora um suspiro, ora um soluço:
- Foi magro meu
desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos,
orelhas violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de
sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma
crispação de demônio torturado. Nos momentos de investigações suas vistas
transmudavam-se rapidamente, crescendo, interrogando, teimando. E quando as
narinas se lhe dilatavam? Parecia-me ver o violento acordar do anjo bom,
indignado da vitória do anjo mau, sempre de si contente na fecunda terra de
Jeová. Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira.
A clavícula, arqueada. No omoplata, o corpo estreito quebrava-se numa curva
para diante. Os braços pendentes, movimentados pela dança dos dedos, semelhavam
duas rabecas tocando a alegoria dos seus versos. O andar tergiversante, nada
aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro.
- Essa fisionomia, por
onde erravam tons de catástrofe, traía-lhe a psique. Realmente lhe era a alma
uma água profunda, onde, luminosas, se refletiam as violetas da mágoa.
(...)
- Por muito que de mim
procure na memória, não alcanço data mais velha à do ano de 1900, para o começo
de minhas relações pessoais com Augusto dos Anjos. Feriu-me de chofre o seu
tipo excêntrico de pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva.
- Descia do Pau d’Arco,
sombrio Engenho de açúcar plantado à aba do rio Una, vindo prestar exame no
Liceu. O aspecto fisionômico então alertado, e o desembaraço nas respostas
anunciavam a qualidade do estudante, cuja fama de preparo correu por todos os
recantos do estabelecimento, ganhando foros de cidade. Cada ato prestado valia
por afirmação de talento, e de peito aberto louvores se erguiam ao melancólico
pai, único professor que tivera no curso de humanidades.
- Não soube resistir ao
desejo de travar relações com o poeta. Fui impiedosamente atraído, como para um
sítio encantado onde a vista se alerta por encontrar movimento. E de tal forma
nos acamaradamos, que, dias depois, lhe devia o exame de latim,
desembaraçando-me de complicada tradução, numa ode de Horácio.
- De certa feita
bati-lhe às portas, na rua Nova, onde costumava hospedar-se. Peguei-o a
passear, gesticulando e monologando, de canto a canto da sala. Laborava, e tão
enterrado nas cogitações, que só minutos após deu acordo de minha presença.
Foi-lhe sempre este o processo de criação. Toda arquitetura e pintura dos
versos as fazia mentalmente, só as transmitindo ao papel quando estavam
integrais, e não raro começava os sonetos pelo último terceto.
- Sem nada pedir-lhe,
recitou-me. Recorda-me, foram uns versos sobre o carnaval, que o batuque nas
ruas anunciava próximo.
- Declamando, sua voz
ganhava timbre especial, tornava-se metálica, tinindo e retinindo as sílabas.
Havia mesmo transfiguração na sua pessoa. Ninguém diria melhor, quase sem
gesto. A voz era tudo: possuía paixão, ternura, complacência, enternecimento,
poder descritivo, movimento, cor, forma.
- Dando de mim, estava
pasmado, colhido pelo assombro inesperado de sua lira que ora se retraía, ora
se arqueava, ora se distendia, como um dorso de animal felino.
- Mais tarde, ouvindo
no violoncelo um concerto de Dvorak, recebi a impressão igual, de surpresa e
domínio, à do meu primeiro encontro com os versos de Augusto.
- A que escola se
filiou? – a nenhuma.
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(1) Fonte: Augusto dos
Anjos – Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996
(2) Apud José Lins do
Rego, Augusto dos Anjos e o engenho Pau d’Arco.
(3) Apud José Lins do
Rego, idem.