Augusto dos Anjos e a poética científica
Os principais defensores e teorizadores da
poesia científica no Brasil – os já citados Rocha Lima, Sílvio Romero e Martins
Júnior – participaram, de alguma forma, da Faculdade de Direito do Recife,
centro da Escola do Recife. Como Augusto dos Anjos aí estudou de1903 a 1907,
temos como certo seu contato com a ideologia positivista e com a poética
científica, o que nos sugere a possibilidade de o poeta ter adotado tal
estética de forma programática.
O primeiro autor a verificar a ligação da
poesia de Augusto dos Anjos com a poética científica foi Santos Neto, seu
companheiro de estudos na Faculdade de Direito de Recife e para o qual Augusto
dos Anjos dedicou um dos Poemas Esquecidos (Idealizações) e o Poema Negro, do
Eu. Ambos moraram na mesma pensão, em Recife, e tiveram boas relações, pois
Augusto dos Anjos refere-se ao colega, numa carta à mãe, como: “meu companheiro
de labores intelectuais e dedicado amigo” (ANJOS, 1994, p. 695). Em Perfis do
Norte (1913), Santos Neto tratou da obra de Augusto dos Anjos, afirmando que
esse, inspirado pelas “grandes idéias filosóficas”, foi um adepto da poesia
científica, mas sem fazer didatismos (apud MAGALHÃES JR., 1977, p.192).
Antonio Candido, em Formação da literatura
brasileira (1975) afirmou que Augusto dos Anjos foi um “rastilho da explosão”
daquela estética que havia estourado na geração de 1870: a dos poetas
científicos. Candido considera-os modernos nas idéias – naturalistas,
evolucionistas, republicanas, socialistas, anti-espiritualistas e
anti-românticas – mas românticos condoreiros em suas realizações poéticas, em
que predominava a oratória humanitária ou revolucionária. Augusto dos Anjos foi
um rastilho porque sua obra foi produzida mais de 30 anos depois do surgimento
da poesia científica.
Ledo Ivo, em As diatomáceas da lagoa
(1961), afirmou que a atitude de Augusto dos Anjos apoiou-se nos conselhos,
dados por Sílvio Romero, de integrar a poesia à ciência; portanto, ele
pertenceria à estirpe dos poetas científicos, ainda que tenha sido, segundo o
autor, o único dessa espécie a ter sobrevivido. Ledo Ivo, refletindo sobre a
permanência da poesia de Augusto dos Anjos mesmo após a derrubada dos sistemas
filosóficos em que ela se baseou, concluiu que essa filosofia participaria, “da
própria contextura da obra” (IVO, 1973, p. 328): Augusto dos Anjos teria
apresentado em seus versos uma visão particular, apesar de fundamentada
naquelas idéias filosóficas que, transpostas para a esfera do poético, puderam
sobreviver, pois adquiriram uma nova função.
José Escobar Faria, em A poesia científica
de Augusto dos Anjos (1956), ao discutir as idéias científicas presentes no Eu,
relacionou a obra de Augusto dos Anjos a “uma possível poesia científica”
(FARIA, 1994, p.146). Para Antônio Houaiss (1964), a inclusão de Augusto dos
Anjos na categoria dos poetas cientificistas e filosofantes seria válida.
Segundo Delmo Montenegro (2004), o Eu, mesmo tendo sido publicado quase 30 anos
depois do manifesto de Martins Júnior, “representou a realização plena do ideal
literário do autor de Visões de Hoje [Martins Júnior]” (MONTENEGRO, 2004, ).
Fausto Cunha, em Augusto dos Anjos salvo pelo povo (1963), conferiu ao poeta
“uma atitude francamente naturalista, marcada pelo ‘realismo científico’”
(CUNHA, 1994, p.168). Agripino Grieco, em Um livro imortal (1926), afirmou ser
Augusto dos Anjos um “epígono retardado da Escola do Recife” (GRIECO, 1994, p.
82). Ferreira Gullar aludiu ao contato do poeta com o “espírito cientificista
que se tornara tradição da famosa Escola do Recife, a partir de Tobias Barreto”
(GULLAR, 1978, p. 15). Jamil Almansur Haddad assegurou que a "geração de
Augusto dos Anjos ainda é herdeira da escola do Recife, do pontificado de
Sílvio Romero e Tobias Barreto e acaba sendo um florescimento brasileiro da
poesia científica" (apud FERNANDES, 2004, ). Portanto, de acordo com a
tradição crítica, a obra de Augusto dos Anjos sofreu, efetivamente, influência
da poesia científica. Outro dado que aponta para a relação de Augusto dos Anjos
com a poética científica é o seu envolvimento na polêmica estética promovida
por Farias Brito e sua poética idealista, que se opunha à poética científica.
Em 1914, mesmo ano em que Farias Brito lançou o livro O mundo interior, Augusto
dos Anjos publicou o seguinte soneto, dedicando-o, ironicamente, a esse
filósofo partidário da poética idealista e adversário da científica.
Natureza Íntima
Ao filósofo Farias Brito
Cansada de observar-se na corrente
Que os acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A Natureza olhou-se interiormente!
Baldada introspecção! Noumenalmente
O que Ela, em realidade, ainda sentia
Era a mesma imortal monotonia
De sua face externa indiferente!
E a Natureza disse com desgosto:
“Terei somente, porventura, rosto?!
“Serei apenas mera crusta espessa?!
“Pois é possível que Eu, causa do Mundo,”
“Quanto mais em mim mesma me aprofundo,”
“Menos interiormente me conheça?”
(Outras Poesias. In: ANJOS, 1994, p. 317)
Nesse soneto, o poeta questiona a
possibilidade de se investigar a natureza – examinada pelo positivismo de forma
empírica, concreta, fenomênica – em sua essência, como quer o idealismo. Essa
investigação pressupõe que a natureza possua uma vida interior, espiritual e
independente do mundo externo, isto é, que além do fenômeno natural exista uma
essência, um nôumeno, um objeto do conhecimento intelectual puro, que seria a
coisa em si. Utilizando de ironia (baldada introspecção!), o poeta sugere a
inutilidade dessa tentativa metafísica e espiritualista de conhecimento: a
Natureza (transformada em entidade) volta-se para a investigação de seu
interior, mas inutilmente, porque nessa dimensão ela não encontra o nôumeno,
mas a mesma imortal monotonia / De sua face externa indiferente, descobrindo no
hipotético mundo interior natural o mesmo que o mundo exterior apresenta. Em
outras palavras, a Natureza averigua a inexistência dessa dimensão interior
independente – isso corresponde a uma refutação da poesia introspectiva
defendida por Farias Brito. Augusto dos Anjos sugere que esse tipo de
investigação não apenas conduz a conhecimentos falsos, como também dificulta a
aquisição de conhecimentos reais e prováveis – positivos – baseados nos
fenômenos cognoscíveis: quanto mais a natureza procura compreender esse “mundo
interior” (quanto mais em mim mesma me aprofundo), menos conhecimento ela
adquire (menos interiormente me conheça). Não há um mundo interior a ser
descoberto, mas apenas o mundo factual. Esse poema de Augusto dos Anjos reflete
uma disputa filosófica importante, no fim do século XIX, entre a filosofia
positivista e a teologia (ciência do sobrenatural), o espiritualismo e a
metafísica. O eu-lírico opta pelo positivismo e recusa os outros sistemas como
formas de conhecimento, porque esses recorrem a causas ou princípios não
acessíveis ao método da ciência, inscrevendo sua poesia dentro da poética
científica.
O poema Natureza Íntima constitui uma
crítica à perspectiva idealista – que defende possuir a realidade um caráter
espiritual e que, no sentido gnosiológico, reduz o objeto de conhecimento à sua
representação ou idéia. É também uma defesa do método positivista, científico,
objetivo e descritivo, que propõe o exame dos fatos e a descoberta de suas
relações constantes, expressando-as na forma de leis que permitem prever os
fatos futuros. O soneto representa uma concordância com a poética científica
baseada na filosofia positivista.
Além dessa evidência poética, que nos
indica a influência da poética científica na obra de Augusto dos Anjos, algumas
informações biográficas também apontam para o fato de que o poeta teria,
realmente, estabelecido contato com essa poesia. Augusto dos Anjos possuía um
tio paterno chamado Adolfo Generino Rodrigues dos Anjos que, após uma briga
familiar, mudou seu nome para Generino dos Santos e se fixou no Rio de Janeiro,
perdendo o contato com sua família. Esse tio foi um praticante ortodoxo da
doutrina de Comte e teria produzido poesia científica; sua produção intelectual
foi reunida em uma publicação póstuma, cujo título geral é Humaníadas. Augusto
dos Anjos, quando se mudou para o Rio de Janeiro em fins de 1910, pôde conhecer
e manter contato com esse tio. Sobre o tio, Augusto dos Anjos afirma em carta à
mãe, em 21 de setembro de 1910: “quanto ao Generino com grande espanto meu,
abraçou-me estreitamente, [...] dizendo ter sumo prazer em abraçar o Augusto, a
quem já conhecia não só como sobrinho, mas por uma revista de Minas Gerais que
me tecera elogios abundantes” (ANJOS, 1994, p. 710). Após esse primeiro
contato, tio e sobrinho estabeleceram relações tão amistosas que Generino
chegou inclusive a compor um poema em homenagem à filha de Augusto dos Anjos.
Em outra carta à mãe, em 16 de julho de 1911, Augusto dos Anjos diz: “o
Generino que é grande amigo meu e de Ester, está sempre conosco, revelando-se
assaz interessado em relação aos meus negócios particulares” (ANJOS, 1994, p.
724). Depois da publicação do Eu,Augusto dos Anjos afirmou, em carta à mãe de
27 de junho de 1912, que “o Generino entusiasmou-se com os meus versos e
escreveu-me uma longa carta” (ANJOS, 1994, p. 737). Com todo esse contato com o
tio praticante de poesia científica, abre-se a possibilidade de que esse possa
ter influenciado, de alguma forma, com suas idéias filosóficas e estéticas, a
produção poética de Augusto dos Anjos.
Raimundo Magalhães Jr. ressaltou que a
estada de Augusto dos Anjos na Faculdade de Recife influenciou de fato a sua
poesia: “a convivência, com professores e alunos, num centro cultural
fervilhante de idéias, causaria poderoso impacto em sua [de Augusto dos Anjos]
inteligência moça, dando nova feição à sua poesia” (MAGALHÃES JR., 1977, p.
80). Em 1904, a morte de Martins Júnior abalou os estudantes e suas idéias
acabaram ganhando mais destaque: “todo o barulho em torno de Martins Júnior
(...) deve ter levado Augusto dos Anjos a dar especial atenção a seus versos e
às teorias do poeta desaparecido” (MAGALHÃES JR., 1977, p.109). Quando Augusto
dos Anjos retorna à Faculdade de Recife para prestar os exames do segundo ano
do curso, em 1905, ele encontra o ambiente da Faculdade ainda abalado com a
morte de Martins Júnior. Foi então que, sob a influência do pensamento de
Martins Júnior, Augusto dos Anjos transformou sua poesia, adotando o
cientificismo – “a segunda passagem de Augusto dos Anjos por Pernambuco
equivale a um divisor das águas, em sua poesia, ainda que a transição tenha
sido feita aos poucos, como era natural” (MAGALHÃES JR., 1977, p. 111). O fato
é que pouquíssimas produções anteriores a 1905 foram escolhidas por Augusto dos
Anjos para comparecer ao Eu. Dos 58 poemas, apenas 15 são anteriores a ou
escritos em 1905: de 1905 são os poemas: Solitário, Uma Noite no Cairo, Vozes
de um Túmulo, os sonetos dedicados ao pai, A Árvore da Serra, Mater, Insônia e
Barcarola; de 1904, os poemas: Vandalismo, A Ilha de Cipango eEterna Mágoa; de 1902
é o poema Vencedor; e o mais antigo, de 1901, Versos Íntimos.É por isso que
escolhemos para o corpus poemas posteriores a 1905.
É importante considerar que, na opinião de
vários críticos, os ditos poetas científicos não teriam sido bem sucedidos nas
tentativas de pôr em versos suas idéias estéticas. Segundo Ivan Lins, as idéias
de Martins Júnior constituíram, na prática, um “malogro poético” (LINS, 1967,
p. 463). Para Ventura, a poesia de Romero e Martins Júnior não atingiu os
objetivos por eles propostos, limitando-se à “afirmação didática dos novos
credos” (VENTURA, 1991, p. 96). Merquior (1979) afirmou que Sílvio Romero
escreveu em estilo hugoano, não obstante suas intenções científicas. Péricles
Ramos também disse, sobre o Cantos do fim do século, de Romero, que embora a
intenção do livro fosse anti-romântica, sua “expressão permaneceu vaga,
nebulosa e tingida de hugoanismo, continuando, pois, com aparência romântica”
(RAMOS, 1989, ). Martins Júnior, ao comentar a mesma obra de Romero, afirmou que
o prefácio do livro era bastante importante, por conter “uma magnífica teoria
artística” (MARTINS JR., 1883, p. 25), mas que o autor, na composição dos
poemas, não a teria utilizado. O próprio Romero confessou, sobre seus versos,
que não acreditava haver perfeitamente posto em prática suas idéias a respeito
da nova poesia mas que, mesmo assim, teve-as em vista quando escreveu seus
poemas. Veríssimo observou que Romero pôs em versos noções científicas,
pensamentos filosóficos e também conceitos históricos e opiniões sociais, porém
“com maior ardor que sucesso” (VERÍSSIMO, 1963, p. 56). Além de criticar
Romero, Veríssimo, em sua avaliação da poesia científica em geral, afirmou de
seus praticantes que nenhum era “credor de estimação”, produzindo apenas “manifestações
minguadas e somenos” e “frutos pecos ou gorados ainda em flor”; os ditos poetas
científicos teriam se limitado a versificar noções, princípios e conhecimentos
científicos, incorrendo no didatismo. Por fim, ele julgou ter sido a poesia
científica uma “coisa híbrida e desarrazoada”, que “de poesia só teve o
exprimir-se em versos, geralmente ruins” e, sendo em muitos aspectos ainda “um
remanescente do condoreirismo” (VERÍSSIMO, 1963, p. 56).
Augusto dos Anjos teria sido então um dos
únicos poetas científicos a ter sobrevivido e adquirido renome. Verificaremos,
em seguida, como a poética científica se realizou em Augusto dos Anjos, em
comparação com outros poetas científicos.
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Márcia Peters Sabino: “AUGUSTO DOS ANJOS E
A POESIA CIENTÍFICA” (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em
Letras, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, área de
concentração Teoria da Literatura, como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Estudos Literários. Orientadora: Profa. Dra. Teresinha Vânia
Zimbrão da Silva). Juiz de Fora, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui
na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de
que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos
tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema,
recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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